04 agosto 2006

Verão Quente 2006

Há tempos ásperos. Arrancam-nos a pele sem nos apercebermos da queimadura interior que a luz mais vertical provoca. Tornamo-nos arquitectos dum espaço que não conhecemos, cinza dum incêncio imprevisto, sombra duma árvore à deriva. Com urgência, ungimo-nos de afectos, vasculhamos passados e coincidências, silenciamos alegrias, arrombamos gavetas à procura de analgésicos que suavizem o golpe dos dias e o sono das noites. Recortes de jornais, poemas, fotografias antigas, berlindes, sépia de memórias. O ruído do pensamento torna-se ensurdecedor, quebra rotinas de vidro, espalha nos olhos o caleidoscópio do caos. Desejamos o silêncio da mármore fria no brilho inclinado duma estrela. Uma terapia dos sentidos que nos massaje o ego e nos vacine contra o mundo. Cicatrizes. Uma varíola gravada no ombro, um tétano em queda de infância, um acidente de percurso. É no ventríloquo esquerdo que a ressonância desses tempos pulsa agora. Morde as palavras, reacende raivas. A ferida solar à qual estranhamente não escapamos é sazonal. Retorna com as marés, repleta de espumas ácidas e abandona-nos no areal insidioso duma ampulheta.